segunda-feira, 16 de julho de 2012



O BRAÇO A TORCER
(Foz, 19.maio.2012)


 Olha, aqui na Folha online, propaganda deste seu Roberto desmilinguido.
 Lá vem você, né? Não sou mais a namoradinha ingênua de outros tempos.
É. Na verdade, faz muito que não há razões pra ter ciúmes, mas ele insiste:
 Ora, o Sinatra, sim, era o homem! E também esteve em Jerusalém! Olha pra mulher, para ver a reação. Nada. Ela não para. Limpeza e cozinha não casam bem com falação. Ele perde a graça. Fecha então o notebook:
 Vou pra rua, diz. Seria chato mesmo ficar ali, durante a preparação do almoço, implicando com o romantismo dela e escutá-la dizer: Homem, cê tá ficando velho, dê o braço a torcer...
Abre o portãozinho que sempre chia. Aquele óleo Singer, que sua mãe usava, daria um jeito nisso, num só toque. Arruma a camisa na calça que já lhe aperta a barriga, limpa os óculos bifocais ainda com o lenço de algodão. Menos de vinte anos atrás, seu pai usava chapéu e não saia nem à esquina sem canivete e binga no bolso.
O ônibus verdão desce pela rua Xavantes e freia rinchando. Há um montão de jovens barulhentos ali no ponto. Os cães da casa vizinha fazem o maior escarcéu, reação, ainda que tardia, aos piás arteiros que tanto os atormentaram com os traques de Natal.
Poxa, e é domingo. Não há, pois, cobrador. Bem que outro dia um motorista estava maldizendo amargamente a empresa que os obriga a este duplo trabalho: dirigir e cobrar; perigo a mais pelo mesmo salário minguado. Tudo tão estressante.
 A saúde vai pro pau, meu amigo! Um companheiro adoeceu, ruim, ruim da cabeça, aí saiu e meteu processo neles e, claro, perdeu, mas já jogou pra segunda instância.
 Essa, sim, é uma causa pra se apoiar!, tinha dito enfático, querendo pagar com a onça, mas não havia troco. O motorista gostou tanto dessa adesão decidida que nem ia cobrar; pelo menos pareceu. Mas, quinze minutos mais tarde, já na porta do Terminal, quando o semáforo recém-instalado os deteve, o danado rebuscou graúdos noutra gaveta e acabou trocando-lhe a nota de cinquenta. Era justo, consolou-se, afinal estava viajando. Às vezes, porém, dói pagar o preço da passagem.
O ônibus arranca. Os cães se acalmam. Soubesse latir bem, eu lhes explicaria que por mais que ladrem a caravana não se detém, sorri. O fato é que, aliviado, pode começar o passeio. Sobe devagar pela rua.
As roseiras da vizinha, umas touceiras tão baldias, estão cobertas de cores e nuances. Que coisa! Resiste à tentação de lascar um galho delas, para pôr no vaso da sala. Olha pra cima, não sem esforço, seu pescoço anda meio duro. A sibipiruna altíssima da esquina teima em seu amarelo alegre, indiferente ao avançar do outono. O contraste com o azul do céu é uma daquelas coisas comuns de todo um sempre que nunca lhe cansam.
Ao dobrar a rua Carijós, para extasiado. A ameixeira encopada está forradinha de botões pardo-aveludados, abrindo-se. Seu perfume é doce, denso, aconchegante. Uma senhora florada! Abelhas zumbem inebriadas. Dá moleza, dá saudade.
Foz é mesmo uma cidade singular. Não há praticamente uma só esquina que não tenha um pé de fruta. Será o clima, será o carinho do povo? Olha de rabo de olho a plantação do seu Romano, vasto terreno de vários lotes que restaram da retalhação de uma chácara. Verdeja ali um mandiocal que se renova cada ano. Há quiabos. No que um dia vão ser calçadas, a batata-doce se esparrama pelo chão. Esquecido, mas viçoso, num intenso verde-escuro, o frondoso abacateiro faz companhia a duas moitas de acerola. No auge da produção dessas últimas, passantes ali se detêm e, em saquinhos, levam quilos de vitamina C. Todos o aprovam, se não estraga mesmo, né?
Do outro lado, e no jardim, há um pé de carambola com florzinhas roxas. Mais para baixo, na Caigangues, encontram-se mangueiras cobertas de inflorescências, cachos louros de talinhos vermelhos, um buquê imenso que a brisa toca e sacode. Das copas ela borrifa outro aroma no ar, este é mais fresco. Pena que até mesmo uma mínima geada, nas próximas semanas, possa acabar com este festival da abundância. Algo lhe dói, mas não sabe onde. Pois é! Nem toda flor chega a ser fruto, cisma. É flor demais, sorriu depois, aspirando profundo, como nunca fizera antes.
Ali, chegando na Marajoaras, um pé de uvaia esguio com suas frutas suculentas o atrai. Meio sem jeito – que dirão os vizinhos? – apanha uma das graúdas e a suga deliciado, hummm! Ela se derrete em seus lábios. Fruta madura perde todo o azedume.
Já, subindo pela Bororós, vê, por sobre as casas, três brilhosos jenipapeiros – os parentes gigantes do café. É o pátio da escola Benedicto João Cordeiro. Veem-se os jenipapos crescendo. Verdes eles contêm um sumo escuro que na pele, é difícil de tirar. Tudo a ver com os nomes índios que tecem a trama das vias no Jardim Tarobá. Ele imagina máscaras, rituais ou não, quanto podem ser resistentes... As inúmeras árvores de uva-japonesa estão todas carregadas. Quase ninguém as aproveita. Jabuticabeira também há só que, agora, a rainha das mirtáceas anda um pouco triste pelo frio.
Lembra que a cinco quadras dali, há um cajueiro, a mais típica das anacardiáceas, mas que terá acontecido com ele que se vê tão decrépito? Outro dia, deu-se mal ao comparar sua mulher com um anacárdio. – Sem coração? Eu?! Deu trabalho fazer as pazes.
Range de novo o portãozinho enferrujado. Cadê ela?
 – Ô Menina, vem cá. Ele espera na varanda e nada.Tira os sapatos. Entra. Não há ruído na casa grande demais só para os dois.
 Você reparou que esta cidade nunca fica sem flores? Mal acabam os ipês-amarelos, ainda no inverno, e nos enfeitam as tabebuias. Estas se acalmam e logo entram em cena as sibipirunas que nos dão aqueles tapetes dourados nas calçadas. Sobrevém então o incêndio dos flamboaiãs, um mês inteiro se não for mais... Aí, as paineiras, tão rosadas, tão distintas, não se fazem esperar. Troca a camiseta e ajeita os cabelos ralos.
 Minha irmã disse que adora as paineiras em todas as suas fases... Dália! Cadê você, mulher? Tá me escutando? E retoma:
 E já os ipês-rosa começam a dar o ar de sua graça. Dáliaaa!
 Ôh! Tô aqui na churrasqueira... Mas, o ipê-rosa não é a mesma tabebuia? ... E você, agora, não perde nenhuma dessas frescuras, né?! Quer uma carninha? Essa acabei de assar.
Ele vai lá para os fundos e pega  ávido o pratinho. A carne quente é um prazer.
 Ora! A beleza das flores, de todas as flores, me enleva..., diz rindo e, decide não ajuntar "mesmo que não passem de flores".
 Homem, arremata ela, cê já tá ficando velho, hein?! Dê o braço a torcer... Mexe as carnes abundantes ali na grelha. Vou botar agora mesmo aquele CD do Rei...: 'Detalhes'!
 Esse pedacinho, que bom! Ele vai apreciando cada um, cada textura, e outro e mais outro.
Milagre, pensa ela. Não é que ele está gostando mesmo!

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Antonio Villas é acadêmico de Letras.

domingo, 3 de junho de 2012


PÁSSAROS DA CIDADE
(Antonio Villas, Arapongas, 24.09.2006)

Ora, eu não sabia que ao lado do Labclin, na rua Flamingos, havia um pé de jatobá. Sim, senhor; e é alto e bem encopado com aquelas folhas brilhantes. Balançam ao vento morno, os cachos de flores verdes, miudinhas, ainda por abrir e vários frutos temporãos: vagens graúdas marrom-lustrosas. Em frente, do outro lado, há uma palmeira rabo-de-peixe e também uma moita enorme de árvore do viajante... Essas plantas chamam a atenção porque já são velhas e revelam proprietários cuidadosos que souberam enfeitar seus lares com jardins e/ou, talvez depois, preservá-los, dando à cidade estas jóias da flora: Elas acabam atraindo uma pequena fauna alada e movimentada e é assim que o nobre título de nossa Arapongas, PR não fica nem tão vazio, nem anda tão silente... Cidade dos Passarinhos! A palmeira ali, por exemplo, esgalhada, quase imita a copa dum pinheiro. Nos cachos de coquinho, cor de creme ao nascerem, acolhe inúmeros insetos de cores variegadas, zumbidores ou não. Nas folhas espigadas, abriga pássaros: lá estão dois casais de ternas rolinhas, agora febris, em juras de amor eterno. Dissimulam até bem as insistentes consumações deste ardor, cachorras! Parecem que não vêem que no topo da árvore há dois bem-te-vis do peito branco ou quase, vendo tudo. Buliçosos e intrometidos como são, pulam de galho em galho:
– Bem-te-vi! Bem-te-vi!
E descem em picada até o chão, capturando presas suculentas que caíram da palmeira e toparam com a rude e dura calçada; a micro-ecologia vai tomando novos rumos... E tornam à cima, proclamando um domínio territorial sonoro.
Mas o que mais me trouxe lembranças foi uma minúscula e gentil corruíra que nem vi, mas que juro ali estava com o seu canto familiar: gorjeios matinais, claros e melodiosos. Suponho que tenha seu ninho em algum vão, nas axilas das folhas da palmeira. Como é seu costume, qualquer cavidade serve-lhe de guarida. Lembrei-me então de que dentro duma lata de leite em pó que continha pregos velhos, pela metade, esquecida pelo carpinteiro na viga de um puxado, numa casa de minha infância, havia um ninho destas cantoras simpáticas...  Mamãe em jejum está lá dentro, esperando as enfermeiras, enquanto eu aproveito o tempo – depois de tantos anos – e ouço e contemplo estes espécimes de minha terra. Sendo já mais de seis e trinta da manhã, deito os olhos sobre um bando de bicicletas de ambos os sexos. Seus pneus – chiando – descem a rua, deslizando diligentes rumo às indústrias moveleiras, alimentícias e outras. São trabalhadores que vão calados, em velocidade e roupas uniformes, como vão os operários de uma cidade do sul.
– Do sul? Como assim? Qual? E... Por que calados?
Bom: sul, norte, centro... Isto já não importa! O certo é que um deles vai com o coração doído. Pedala desorientado, seguindo os outros. Oprime-lhe os ombros uma tonelada de pesar, dose industrial. Não dormiu direito esta noite e, por cima, a ressaca. Não fosse a mãe, que acorda com o galo, ele nem teria levantado. Tomou um porre, sim, pois a namorada dele, secretária do patrão, deu-lhe o fora, ontem de tardezinha... Tão de supetão ela jogou aquilo na sua cara que a mortadela do sanduíche se lhe atravessou na goela. Ela entrou, onde nunca tinha entrado, onde só entram os homens da vila nos fins de tarde e, nervosa, até esbarrou num dos banquinhos, irritou-se ainda mais, fungou algo e o empurrou contra o balcão. Por pouco não quebra o vidro que mostra cervejas no refrigerador e derramou seu desencanto. Não, nem gritou. Não foi preciso, pois o silêncio que sua entrada provocou... Economizou nas palavras, mas não na amargura e foi-se embora... Ele, ele ia engasgar, sufocar, não fosse a branquinha que ele virou de uma só e pediu outras! Os amigos, o bar estava lotado, riram dele e como riram!
– Ué! Mas não era ele que cantava juras de amor pra ela, feito pombinho? Serenata no aniversário, no dia dos namorados...?!
– Tá vendo, cara? disse outro, e a gente aqui te ajudando a comprar o violão amarelo!
Ai, que dor no peito e na garganta! Era verdade. Cantou pra ela durante meses, contou pra eles por quase um ano. Era um corruíra ardoroso, já disposto a construir-lhe um ninho. Com tanto amor assim, qualquer local, em qualquer vila ou conjunto, servir-lhes-ia de guarida... Até jardim eles iriam plantar... Limão, hortelã e pimenta cumbari.
Mas o patrão, bem-te-vi do peito branco ou quase, já tinha estado, ainda que dissimuladamente, arrulhando a sua rolinha. E muita coisa deve ter rolado: galinha! Bem que sua mãe lhe avisou:
– Abre dos olhos, meu filho!
Mas ele chamou a velha de ave de mau agouro, de sogra temporã, de mãe-coruja, sei lá!
Coitada, dava-lhe pena ver no filho único o quanto o amor é cego! E a moça foi ficando diferente..., indiferente..., diversa até no corpo... Ou eram minhocas na cabeça dele? Encasquetou. Reagiu. Ara! Minha mãe é foda! Magina, chamar a moça de franga-choca?! Ela nunca gostou da Sirlene. Mas, pensando bem, esta agora se incomodava com tudo, com o seu jeito de vestir; depois já franzia a testa com o seu modo de falar; se até o violão e as canções a desgostavam.
E, bom! O figurão cantou mais alto e mais sonoro, e proclamou por fim o seu domínio. Por isso é que ela, agora, anda procurando laboratórios... Não estará, agora mesmo, neste daí? Viu de rabo de olho um cara de cara erguida contra o sol, olhando a árvore... Quem será? E mais abaixo o carro estacionado:
– É ele!
Encrespou mais que as folhas da palmeira e freou... Deu meia volta. As pombinhas voaram. Bem-te-vi! Faria uma loucura! Bem-te-vi!
Apoiou a mão no capô; olhou pra dentro, mas...
– Não era... Explicou ao companheiro, o outro bicicleteiro, que veio ver.
– Tá doido, Alonso? Reagiu este.
Mas parecia, disse encabulado!
– E rico lá desperta a estas horas, rapaz?! Vamimbora!
Ficou sem jeito, mas foram-se. 

terça-feira, 3 de abril de 2012

A CORRUÍRA










Direitos da imagem v. link em 'cantando'


Olhava o céu já de manhã cedinho
E abria o peito cantando afinado
E se animava pra a lida do dia
E a trabalhar se punha esforçado.


Não, não perdia tempo o cantorzinho
Três ovinhos 'cabara de chocar
No oco dum mourão da cerca o ninho
Fizera ele para podê-los criar.


Nosso gato calculista e entojado
De canto não gostava o amaldiçoado
Sério, sisudo, se contrariado
Miava grosso e rouco no telhado.


No barranco, no roseiral de espinho
Cauteloso, pé ante pé, de mansinho
Agachado, paciente, curingava
Preazinhos, lagartixas, mangangavas


O rabo chicoteando o ar sacode
Olhões amarelentos, o bigode
E, ai, se o intrometido cão vizinho...
Gente! Hum, hum, hum, mas dava um bode!


É aí que entro eu, fatal destino
Dei-me mal, sem-graceza de menino!


Veio o cantor com o seu paterno carinho
Pra alimentar os três, sim, ele sozinho
Corri e o tampei com as mãos, engraçadinho
Logo o soltei pra ver-lhe o remoinho...


Ele escapou sim, mas sentou pertinho
Temendo - claro - pelos filhotinhos
Esconjurou-me, vejam vocês que valente
Com chiados curtos mas que insistentes.


Foi quanto lhe bastou ao coitadinho!
O gato o ouviu e, zum, mais que ligeiro
Pulou no pau, feito um rojão certeiro
E abocanhou voraz o passarinho.


Órfãos, três dias piaram os pequeninos
Outra dessas? Ai, nunca mais, meninos.


______________________________________
[Dos Poemas infantis]
[A. Villas, Roma, 08.03.1995]

GRANDES ÁGUAS

O Marcão, meu bom amigo, é um caso. Faz cada uma! Hoje, por exemplo, depois do almoço de cinco reau numa marmitex, ali pela Brasil, tando voltando pra casa, debaixo dum sol venenoso, ele simplesmente empacou. Ora, pressa em voltar pra casa pra quê? Não há razão, se já comi, pensou. Caminhar debaixo daquele solão, a mochila ia inté colar nas costas de tanto calor. 


Alá, reparou, uma nuvona carregada, no outro lado da fronteira. Dois corvos planavam com prazer, em círculos, no vento fresco que abria o caminho daquilo que prometia ser um aguaceiro e tanto. Se eu esperar, aquela nuvem vem sobre a cidade e tampa o sol, e do jeito que vai a coisa, só pra isso ela vai servir, porque chover mesmo que é bom, nada! Podia ficar ali, era a praça do Mitre, à sombra duma sibipiruna e esperar. E sentou e esperou, contou-me. 


Deu meidia e meia, deu a uma, e uma e meia, e parece que a bitela tava era estacionada, embromando emburradona, lá pras bandas da Ponte. Hum, fungou ele, pois ficaria ali até que ela se decidisse a cobrir o sol.


Ligou pra mim. Perguntou se ainda podia me cortar a grama do quintal. Ah, você tá no banco? Tá que nem eu então, gracejou. Ficou que desceríamos juntos. Mais um motivo pra esperar. E bateu um sono que só. Assim foi que - e depois que se cansou dos carros hipnóticos - reparou nos treze pés de coquinhos no meio da Schmmelpfeng, diante do colégio Mitre, raquíticos, sim, mas alguns dando frutos amarelos. Lembrou-se de sua infância rural. Desceu as vistas entorpecidas e, espantando o sono, reparou nas platibandas aos pés dos coqueiros e se alegrou com as cores vivas, as inflorescências das moitas de ixoras. Este nome ele nem poderia pronunciar, se o conhecesse, eu é que, passando por lá, pude conferir. Nisto, um canto familiar levantou sua atenção pras copas das árvores. Era um bando de anus-brancos... Iam em fila, voando curto, escarafunchando, por entre as folhas das palmeiras, insetos e, se não me engano, procurando água neste dia abafado, bebendo daquela que se acumula nas axilas das folhas (e não me fale de dengue que me estraga a história, atalhou). 


Bem no canto do Rafain Chopp, divisa com a Honda, ele admirou outras palmeiras viçosas. Uma delas de fato ostenta ‘um cachão assim’ de frutinhas maduras. Frutas ele adora. Ali se congregou a maioria da tribo alada e por mais tempo. Achou ele que era por mais bichinhos e mais água...


A cada ônibus que subia, uma enxurrada de gente passava pela praça, sob o sol, na maioria alunos, abanando-se no mormaço. Cheguei, nesse momento:
˗˗ E nada da chuva, hein?!


Como nem a nuvem nem o amigo chegavam, Marcão se havia posto a ler de novo a poesia que, outro dia, tinha prometido a um manquinho, aquele distribuidor de poesias lá do Terminal.
˗˗ Moedas, amigo? Não tenho, mas vou lhe fazer uma poesia. Pra você distribuir assim. Que assunto você quer: amor de sacanagem, religião, políticos, dinheiro? O quê?
˗˗ Hum, pensou o rapaz moreno de olhos lânguidos, sobre a amizade, disse seguro. Parece que estava mais esperançado nu-ma moeda graúda que nesta vaga promessa de versos duvidosos, mas como a moeda não veio... Marcão lhe havia dito que gastara tudo.
˗˗ E ficou nisso, cara! Lembra e ri, chacoalhando a cabeça desgrenhada.
˗˗ Ah! Ficou assim, olhe aí e me estendeu o escrito revisado em vermelho por uma moça da UDC, sua vizinha. No papel que é o lado de dentro duma caixa de pasta dental, aberta às pressas e mal recortada, lê-se:


PENSE!
Já dizia Salomão
Hoje tão pouco lembrado
Oh! Que tudo é vaidade!
Nem a fama, nem a grana ou o poder, nada
Até mesmo a beleza, a mocidade...
Tudo acaba, tudo se esvai com o tempo
Hoje, mesmo o que faz furor não dura
Amanhã, é folha seca ao sabor do vento
Só a amizade, meu senhor, perdura!



E o comentário ao cliente seria:
“Bom dia, meu amigo(a) eu me apresento,
aí está o meu nome, que é a minha identidade,
por uma simples moeda, quase nada em pagamento,
leve este escrito e PENSE, é um poema-verdade!”



˗˗ Muito bem, Marcão, vejo que é um acróstico, mas o primeiro agá está certo?
˗˗ Tá! Por quê? O nome do nanico é assim mesmo, e duvidou, é acrósco, é?!
˗˗ An-ham! ... Bom, mas vamos que aí vem a chuva.
˗˗ Tomara, desejou, guardando o poema no bolso da mochila e pegando o tesourão de debaixo do banco. Riu, mas deu-me razão de que manquinho e nanico não foram termos gentis. Verificou que finalmente a sua nuvem gigante cobrira o sol e lá fomos nós, descendo pros lados da Wandscheer.
˗˗ E já estamos em março, né?!
Não entendeu, mas concordou. Chuviscava miudinho, mas pra quê apurar o passo, se era promessa mentirosa? Escureceu. Nem ligamos. Ventou, levantando súbitos remoinhos de folhas do bambuzal dos barrancos do Boicy. Demos de ombro. Já subindo, trovejou soturno. Rimos. A uma quadra de casa, uns pingos ralos aqui e ali. Bom, e afinal, chegamos molhados os dois, sim, mas pelo suor da subida, não pela chuva que nunca veio:
˗˗ Ah! Marcão, esta sua Foz das grandes águas e de tão poucas chuvas!


[Antônio Villas, Foz do Iguaçu, 02.03.2012]

O POÇO

(2ª Ed. Antônio Villas, 5-5-2000)




O poço tinha sido escavado à sombra dum limoeiro que florescia o ano todo. As pombinhas ali sentavam de tarde, mansinhas, pousadas na cobertura bem feita que protegia o sarilho e a corda dos efeitos do sol e da chuva. A brisa calma balançava o limoeiro. De manhã cedinho a planta derrubava flores perfumadas em cima do caixão do poço. A mulher arredava as flores levemente raiadas de roxo com as mãos, respeitosa, satisfeita. O caixão do poço era de tábuas branquinhas, sempre bem lavadas.
Quem olhasse bem ia ver que a água era clara e brilhante, lá no fundo.
- Desce a tampa, aí, menino, que é pra não cair sujeira.


Tinha samambaia e musgo nas beiradas do poço. Das paredes dele escorria todo o tempo a umidade e as gotas caíam sonoras, balançando levemente aquele espelho fluído. Tão fundo que chegava a dar vertigem e, mesmo assim, a criançada vinha ali, pra explorar o seu mistério:
- Grita, diz uma criança, grita pro poço e escuta o que ele diz!
Cada uma gritou, curto, a sua palavra e o poço não falhou:
- Senhora, ora, ora, ora...
- Lembrança, ança, ança, ança...
- Responde, onde, onde, onde...
- Cuidado, ado, ado, ado...
Nossa! Cisma um menino, que será que o poço diz? Palavras mais esquisitas...


Nisso a mulher sai da casa pro terreiro, vê, mas não gosta da brincadeira e reclama no ato:
- Saiam daí, crianças. Fazer isso não presta. Este lugar é perigoso. Dentro do poço é escuro e tem pedras lá no fundo...
Mas elas não quiseram sair dali. Que ímã teria aquele bendito poço?! Com razão, fazia mais de 20 anos, o furador tinha encontrado a veia d’água tão rápido. A forquilha verde que ele usou por todo o quintal, de repente, tinha envergado prá baixo, com uma força tal, que não restou dúvidas... Era ali! E foi mesmo!
- Num senta na beira do poço, gente! Ô criançada mais sem consciência!


Nunca faltou água naquele poço. Os vizinhos admiravam, agradecidos:
- Que beleza, homem, e que sorte! Nós tiramos água do poço deles, durante todo o tempo da seca braba...
Mas uma menina pequena veio ali pra puxar água. Tinha que encher o tanque pra lavar roupa. Tirou o primeiro balde, muito pesado pra ela... Derramou água no chão de terra, fez lama onde pisava e ela estava descalça, cantando distraída. A mulher, sua mãe, vendo aquilo, aconselha aflita:
- Pega bem no sarilho, minha fia, mão firme, senão isso aí solta e dispara...


Atarefada a mulher volta pra dentro. O segundo balde lá ia subindo cheinho, derramando. A menina segurou o cabo do sarilho com a mão direita e foi puxar a alça do balde com a esquerda. A terra molhada, lisa que nem sabão. Os pés descalços resvalam. Ela perde o equilíbrio; o sarilho escapa e volta de uma só. Recebe a menina uma pancada de cheio na fronte, seu corpo gira no ar e o peso puxa tudo pra baixo. Um ruído infernal enche a tarde de terror:
- Teleque, teleque, teleque, teleque...
“Senhora d’Aparecida”, grita lá dentro a mulher e sai correndo. “Cuidado! - gritou a mãe - “cuidado!”, mas já foi tarde. O balde cai derramando e se espatifa lá no fundo... As paredes do poço se desbarrancaram... Falta ar nas profundezas... O poço era tão fundo e tudo ali foi tão rápido...




* * *

Havia por lá, uma moça que era um poço de ciúmes, quem
a poderia entender? Tirou o namorado da casa
da menina no tapa, mas esta já é outra
cisma, outra lembrança e outra
história...



E as pombinhas voaram dali. Latiram os cachorros e alguns uivaram. Acudiram as vizinhas. Seguraram os pulsos da pobre mulher, estertorando no desespero pela filha. As crianças, finalmente, se assustaram! Tentaram conselhos, mas dor de mãe é tão profunda... e a vertigem que balança. Ela não escutou foi nada...
E vieram os homens, os sarilhos e as cordas, os gritos, os palpites e os ecos... Custou trabalho, mas tiraram-na do poço.


O velho barbudo e suado limpou a piçarra da testa dela e arrumou seus cabelinhos molhados e, sem tirar os olhos do pequeno corpo, disse com a voz sumida:
- É, gente, seja feita a vontade de Deus!
A mulher rodeada pelas amigas, chama:
- Fia, ô minha fia... Mas ela não responde... Entendeu! Fita então o ar e desvairada exclama:
- Não!
E aquele “não” sai como lança, transpassando de novo a tarde, e o eco responde no poço. E o “não” foi tão profundo que ela mesma não se escutou e teve que repetir como o eco:
- Não! Não! Não! Meu Deus, não!


* * *


- Leva ela lá pa’ dento, ordenou uma velha entendida, traz o espêio, rápido. Coitadinha! Põe ali no rostim dela. Veja lá se embaça...
Mas o barbudo, agastado pelo choro baixinho e as ordens inúteis da banguela, reafirmou:
- Larga mão, Dona Gina! Eu já disse: Seja feita a vontade de Deus!


O povo se esparramou - cessou o falatório por agora - cada um pra sua casa. Só depois, os conhecidos foram chegando, devagar, cuidadosos, falando baixo... As mulheres na cozinha, os homens lá no alpendre.
Alguém trouxe um maço de velas. Duas meninas trouxeram flores grandes, amarelas: um girassol e uma dália.


E a lavaram com as mesmas águas daquele poço que também a tinham batizado, de urgência, onze anos atrás... E a vestiram na despensa, perto do grande pote marrom. Acenderam quatro velas, assim, nos cantos do lençol que forrou a mesa comprida... E a velaram na sala, dentro da noite. E noite adentro aquela história se contou uma e outra vez...


No caixão de tábuas branco que chegou bem tarde, puseram com dó, entre suspiros e ais, um travesseirinho de lamê dourado, costurado às pressas, alinhavado com pontos mal feitos de uma linha preta, cheio de folhas cheirosas e flores já murchas daquele limoeiro...


E, dia seguinte, ai! Enterraram-na no fundo duma cova de terra vermelha que... afinal também é poço: um poço profundo e radical; um poço seco e sem eco, poço inapelável e derradeiro e, agora, feito poça de dor e de lágrimas...




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REMINISCÊNCIAS PRA MĨA MÃE

Estava no primeiro ano da escola recém inaugurada. Escola municipal Antônio Moraes de Barros. Mal sabia ler e me incomodavam muito as correções da professora. Quando eu falava igual à minha mãe, estava errado e se eu imitasse o meu pai, também. Tinha sete aninhos já e era o filho mais velho de cinco irmãos. A Professora, Dona Terezinha Montanhar, motivou a turma:
É mês de maio, (e imagine!) mês das flores, mês de Maria, nenhuma mãe vai ficar sem seu presente, viu, meninos?!


Cada um de nós recebeu até uma poesia diminuta, para ler ou adivinhar, decorar e declamar na ocasião.
Morávamos numa meia-água, lá na Vila São João, parede-meia com os tios baianos, sertanejos. Meu pai, paulista de Lins, um roceiro na cidade, não tinha emprego fixo no momento. Era bóia-fria, mas naquele tempo, este termo não era usado ainda, não em Arapongas no norte do Paraná. Pegava empreitas, se dizia. O dinheiro era pouco. Dava só dava pras compras mais urgentes da semana: arroz, feijão, óleo, açúcar, meio quilo de carne seca - a charque - sabão em pedra... Verdura só a da horta, regadas quase sempre com águas do tanque de roupa, a economia.


Mas chegou o domingo especial. Desde o dia anterior, eu falava sem parar pra pais e tios e pra quem quisesse escutar que eu precisava dar um presente a minha mamãe. E ninguém se mexia. E ninguém se mexeu mesmo, credo! Contudo eu não desesperei...


Quando foi lá pelas dez e meia da manhã, meu pai voltou da feira e do saco branco encardido foi tirando, coitado, com cerimônia só aquelas comprinhas mixas... Ai!
Pai..., eu o encarei aflito, e cadê o presente de mĩa mãe?
Quê? Ah, num deu, meu fio! Três contos! Num deu nem pru chero! Num vê que nem bala-doce pros cêis eu truxe?’
Ah! Mas eu virei um bicho! Fechei a cara; que todos notassem que o mar não tava pra peixe... Ninguém notou. Garrei zanzá pelos cantos da casa; não quis comer. Depois saí para o quintal num desassossego que só. Que ressentimento! Esses cão não entende que hoje é o dia das mães!


Foi tia Moça que, na janela, coçando o pixaim, deu o alerta:
Maria..., vai lá ver seu filho; tá lá, atrás do mictório, num pranto de choro!
Houve uma falação... Tia Branca, sem desgrudar dos seus trens bem areados e das panelas fumegantes, ao escutar presente, estrila:
Pre-sen-te? E sem soltar a colherona melada, põe as mãos nas cadeiras, desdenhando aquela criancice, mania de gente rica e, pela janela, por sobre o jirau, dispara:
Isso é muita birra, seu cara de Narrau!
Aí sim que eu abri a boca! Mas Tia Lu (saberia ela quem era esse tal Narrau?), dando a última laçada no crochê que tricotava, assim dizia eu, interferiu:
Ora... eu fico é desdignada... Criança é gente, ôs minina, e tem coração!


Mãĩa então dispôs que seu Zezĩo voltasse à feira com u minínu, tava na cara que aquilo era as lumbrigacriança passá vontade fica aguada, um pirigo! - e que comprasse, pois, nem que fosse uma bobaginha.
Veste a camisa, fílio, e vai com seu pai - organizou a mãe.
Fungando, seu José aceitou de má vontade. Moleque pirracento! Agora deu pra fazer dessas birras. Vote! Uma tia providenciou alguns cruzeiros, e agora até me lembro, foi a própria Tia Branca tão previdente. Ah, já tá melhorando, pensei. Tomei ar e empinei o narizinho. Tomamos café, bom, quem tomou foi meu pai que fez também a sua boquinha, pegando um torremo sargado, depois acendeu um cigarro. Mas fomos, ufa!


Um quilômetro mais pra arriba, demos com a gentarada, passeando e comprando naquele alvoroço. A feira era em frente ao Grupão. Vai daqui, vai dali, os preços horrivis, de tão altos. Deu mei-dia e já estavam desmontando as barracas; era fim de feira.
– Apura, meu fio, senão acaba o movimento, sô!
E caça e escolhe. Não, esse não, talvez aquele ali, ó, mas não. Que preço, viche! Volta e remexe nas bancas e caixotes. O pai, cumprimentava os mil conhecidos e, todo constrangido, explica aos feirantes a nova mania do menino... Dei finalmente com um vaso de plástico de cor verde-leitosa. Ergui-o e girei contra o sol para vê-lo bem. Tinha linhas decorativas gregas que o circundavam em cima e em baixo. O preço não era lá grandes coisas. No bojo dele havia uma representação de uva em baixo-relevo: sim, era um cacho de uvas, com duas folhas assim, dos lados, o galhinho lascado, ali, em cima e o típico raminho enrolado... As uvas estavam pintadas de branco, roxo e amarelo, e as folhas graúdas eram de um azul esmaecido. Coisa mais linda, achei! O material em si era tão leve que compreendi o porquê de terem posto um pouco de cimento no fundo... Para equilibrar. Ai, mas ficaria tão bonito numa mesa de sala! Mas, como sala no puxado não havia, seria na da cozinha mesmo, nas tardes, depois de lavadas as louças, com algumas flores dentro.


– Apura, minino!
– Paga, pai!
Voltamos. Eu, radiante, não via a hora de chegar, e já chegando, corri na frente e chamei todo mundo.
– Mãe! gritei.
– Já vô, fílio, deixa eu pentiá!


Ela veio lustrosa, disfarçando a curiosidade. Desamarrei o embrulho de jornal, jogando o barbante duro para um lado. Entreguei o é-pra-senhora-no-seu-dia-mãe e disparei, claro, a po-e-si-a que nem lembro mais qual foi. As tias aplaudiram e riram gostoso. Minha mãe..., ai, a minha mãe, no seu vestido incendiado de cores quentes, me abraçou com cheiro bom de sabonete palmolive, que contém lanolina, e me beijou. Meu pai sentado na cama, tirando o sapatão apertado, bateu uma pedrinha, suspirou que com essas modas, tão sem-jeito, que a escola incute nas crianças, hum, num sei, não! Eu num sei como é que eu vou terminá! Mas Dona Maria elogiou o menino gentil e lhe desejou boa sorte:
Deus que le dê virrtude, meu fílio!


A tia Lu fez que ia como as outras, mas não... abeirou foi mais, sorrateira. Precisava participar de tanto êxito, pois, afinal, na casa de sua patroa, a Dona Alcione, também professora e que ela adorava, se fazia o mesmo. Péra lá, disse de repente e, passando a mão numa tesoura usada, foi para a frente da casa, perto do alpendre cercado de balaústres trançadas e cortou três dálias pompom de cor groselha e uma mista de cores vermelho e branco. Esta ela tinha regado de propósito com água de carne, para conseguir a inusual combinação. Deixou os talos compridos, pois o vaso era fundo e pôs aguinha fresca... Pronto!


Depois do almoço, correndo desembestado, como sempre, eu entrava e saía, pra ver e rever aquela mesa coberta com uma humilde toalha e o vaso de minha mãe bem no centro. A mesa nunca esteve tão bonita. Nossa casa agora sabia que era mesmo um “Dia das Mães”! Foi assim que eu cumpri pela primeira vez com o meu dever de filio, azucrinando a família inteira, no primeiro dia das mães de que eu tenha notícia, quando corria o ano de 1965!


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(Antônio Villas, Veneza, maio de 2007)


[A 1ª ed. foi pub. na Rev. Guatá, Foz]

DE ARAPONGAS & PINHEIROS

CATIVEIRO. Quando criança, meados dos 60, conheci uma meia dúzia de arapongas, sempre em gaiolas. Perto da Matriz, talvez nas casas dos Scolari, havia algumas. O finado Roque Rabito também as tinha. Cultivava o pioneiro paulista o gosto pela fauna canora da região na casa com jeitos de castelinho que possuía, não longe da antiga Rodoviária. Escutava-se uma ou outra esparsa pela cidade. Ao que parece, aquelas coitadas todas morreram em cativeiro, nenhuma deixou descendência.


PÁSSARO FERREIRO. Hoje, se você quiser ver (e ouvir) uma delas ainda, vá ao Passeio Público de Curitiba. Lá, por entre árvores antigas – e extranhamente poucas são pinheiros do gênero Araucária – há viveiros enormes, alguns com mais de sete metros de altura, com pássaros, aves e monos. Num deles, entre pintassilgos, rolinhas caldo-de-feijão, jacus e outros alados aloprados, há duas arapongas brancas. Não, não sei se formam um casal. São brancas, ambas, e têm o pescoço azul-turquesa. Não parecem jovens e, no entanto, são menos encorpadas que uma pomba doméstica. Apesar disso, haja tímpanos para agüentar aqueles golpes de bigorna.


AGRESSIVIDADE. No dia em que fui lá, uma delas estava no baixo. Estacou num arbusto seco, perto das rodelas de fruta espetadinhas nos galhos que os zeladores tinham trazido. Ela se pôs numa posição retorcida, armada de bico aberto, ameaçador. Sera que é sempre briguenta assim? Enquanto desafia os outros pássaros, fica de olho na companheira lá, no alto, e, logo, destampa a goela. A outra lhe segue a toada. Ficaram os ferreiros (talvez ferreiras) por quase meia hora, batendo, malhando... Só quando elas pararam é que o pica-pau branco, meio termo entre carijó e desbotado, se fez ouvir com seus trilos decepcionados, pois em cada um dos seus vôos só faz dar com o nariz nos tubos metálicos da jaula, e ele, pobrezinho, é carpinteiro!


CONCIDADÃOS. Percebe-se então o grasnar suave das muitas garças de brancura deslumbrante que aninham soltas, nos topos das árvores daquele bosque. Dois filhotes já emplumados, desajeitados ainda, se agarram nos troncos ásperos, nodosos. Suas cores juvenis os camuflam bem. Também fora do cativeiro, o João-de-barro marrom passeia com as juntas das pernas duras, por entre os bancos do passeio em público, e sua casa constrói sem contratempos, até sobre os postes, ali da praça. E duram. É um oleiro habilidoso e popular! Só deve cuidar-se de gato doméstico e urbano que o anda espreitando, mas não aqui.


OS ARTEIROS. Ainda no sossego da pausa, acalmada a gritaria aguda, meus olhos vão até lá, no fundo. Macacos de rabos peludos e elevados fazem que vão, mas vêm e vão e vêm, incansavelmente, na sua jaula exclusiva. Maneiros, sobem e descem pelos paus colocados entre as árvores. A pontes pênseis, rabos preênseis! Que entretimento pras crianças e adultos também. Bicicletas inquietas param e até um skate. Eu me ponho a admirar os admiradores dos quadrúmanos. Nossa! Até os sorveteiros respeitam o momento. Muito bem! A macacada, já tarimbada no mundo do espetáculo, intensifica nas macaquices. Artistas, eles tentam de tudo, pra levar os fãs a transgredir as placas de não dar alimento aos animais. Ah, mas vejam só! Os sorveteiros, sacanas, têm saquinhos de amendoim escondidos entre os sorvetes. Arteiros, os macacos sabiam de tudo. Cumplicidades! Evidentemente! O resto se adivinha, né?


TÍMPANOS! Pronto! O silêncio durou pouco. As arapongas recomeçam a esgoelar. Volto, por força, à grande jaula, o viveiro de antes, feito de novo, uma indústria artesanal do ferro. O caminhão do gás, lá da nossa city, deve anunciar-se às donas de casa com alto-falante, pois o sino já ficou no passado. Faz algum tempo ele trocou o abjeto “pour Elise” eletrônico pelo canto metálico das pioneiras extintas! Pese toda a amplificação, aquele caminhão tem mais modos que esta estridente oficina daqui. E são apenas duas! Renego do volume deste canto ardido. Aturde mesmo! Quase endoidece. Vou-me embora!


GÊNESE. Os ingleses, colonizadores do norte do estado, encontraram-nas ali por milhares, em nossas matas iniciais, único hábitat possível para as que se revelariam logo infaustas aves. E eram tantas que, impressionada, a madama, esposa de um Lord, passeando de tarde, depois do chá, abanando-se acalorada, sugeriu usar o nome delas para a gleba nascente, ou comarca, ou distrito, sei lá! Mas milhares? Cruz-credo! Não tivessem sido exterminadas como foram, pelo gritocídio involuntário das derrubadas, hoje iria fazer falta um bando de veterinários especializados em operar as cordas vocais destas gritalhonas... E tais bandidos ganhariam dinheiro!


INTERNET. Mas cá, pra nós: Não é extranho ter que vir à capital do Paraná, só pra poder conhecê-las? Aqui é o reino da gralha-azul. Ouvir as arapongas e sem poder destroncá-las? E pensar que não uma, nem duas, mas três delas figuram no brasão araponguense. Mas não tem outro jeito. Nas últimas festas de fundação lá de nossa cidade, uma escola organizou brilhantemente uma exposição sobre os pássaros. Convites voaram pela urbe em todas as direções. A garotada se desdobrou, numa caçada sem precedentes. Perseguiram espécimens raros e voltaram carregados de inúmeras fotos, cantos e gráficos capturados avidamente na empreitada! A exploração foi bem sucedida, virtualmente sem nenhum controle, na Internet, esta floresta imensa de recursos renováveis. Só assim mesmo!


O IBAMA. O Dr. Paulo Hermínio me contou que, dias antes das referidas comemorações, um senhor bem intencionado e com grande sacrifício, tinha trazido do Mato Grosso uma Procnias Nudicollis que assim se chama a araponga, cientificamente. Fez um esforço danado, pois sentia um desejo irresistível, cívico, de mostrá-la aos concidadãos da vizinhança (e incomodá-los, pois!). A curiosidade alvoroçou o povo. Vieram de longe pra bisbilhotar, aí, até a cachorrada estressou. Mas o reverendíssimo IBAMA baixou lá, confiscou a bichinha e sentou multa, pondo fim naquela gritolatria.


- 'Que pena', deve ter pensado o tal senhor.


- 'Que alívio', devem ter dito os vizinhos!


É BRINCADEIRA! Bom, deixa eu mudar de assunto, pois nestes tempos democráticos e tolerantes, facilmente me tacharão de gritófobo. Já dos pinheiros - o termo tupi “curitiba” é um colectivo deles - falaremos noutra ocasião. Quem sabe, voltando à Arapongas, pois afinal, cinco deles, junto com os ramos da erva-mate e do café, também decoram nossa heráldica municipal.


[Antonio Villas, Curitiba, 2.12.2006]