terça-feira, 3 de abril de 2012

REMINISCÊNCIAS PRA MĨA MÃE

Estava no primeiro ano da escola recém inaugurada. Escola municipal Antônio Moraes de Barros. Mal sabia ler e me incomodavam muito as correções da professora. Quando eu falava igual à minha mãe, estava errado e se eu imitasse o meu pai, também. Tinha sete aninhos já e era o filho mais velho de cinco irmãos. A Professora, Dona Terezinha Montanhar, motivou a turma:
É mês de maio, (e imagine!) mês das flores, mês de Maria, nenhuma mãe vai ficar sem seu presente, viu, meninos?!


Cada um de nós recebeu até uma poesia diminuta, para ler ou adivinhar, decorar e declamar na ocasião.
Morávamos numa meia-água, lá na Vila São João, parede-meia com os tios baianos, sertanejos. Meu pai, paulista de Lins, um roceiro na cidade, não tinha emprego fixo no momento. Era bóia-fria, mas naquele tempo, este termo não era usado ainda, não em Arapongas no norte do Paraná. Pegava empreitas, se dizia. O dinheiro era pouco. Dava só dava pras compras mais urgentes da semana: arroz, feijão, óleo, açúcar, meio quilo de carne seca - a charque - sabão em pedra... Verdura só a da horta, regadas quase sempre com águas do tanque de roupa, a economia.


Mas chegou o domingo especial. Desde o dia anterior, eu falava sem parar pra pais e tios e pra quem quisesse escutar que eu precisava dar um presente a minha mamãe. E ninguém se mexia. E ninguém se mexeu mesmo, credo! Contudo eu não desesperei...


Quando foi lá pelas dez e meia da manhã, meu pai voltou da feira e do saco branco encardido foi tirando, coitado, com cerimônia só aquelas comprinhas mixas... Ai!
Pai..., eu o encarei aflito, e cadê o presente de mĩa mãe?
Quê? Ah, num deu, meu fio! Três contos! Num deu nem pru chero! Num vê que nem bala-doce pros cêis eu truxe?’
Ah! Mas eu virei um bicho! Fechei a cara; que todos notassem que o mar não tava pra peixe... Ninguém notou. Garrei zanzá pelos cantos da casa; não quis comer. Depois saí para o quintal num desassossego que só. Que ressentimento! Esses cão não entende que hoje é o dia das mães!


Foi tia Moça que, na janela, coçando o pixaim, deu o alerta:
Maria..., vai lá ver seu filho; tá lá, atrás do mictório, num pranto de choro!
Houve uma falação... Tia Branca, sem desgrudar dos seus trens bem areados e das panelas fumegantes, ao escutar presente, estrila:
Pre-sen-te? E sem soltar a colherona melada, põe as mãos nas cadeiras, desdenhando aquela criancice, mania de gente rica e, pela janela, por sobre o jirau, dispara:
Isso é muita birra, seu cara de Narrau!
Aí sim que eu abri a boca! Mas Tia Lu (saberia ela quem era esse tal Narrau?), dando a última laçada no crochê que tricotava, assim dizia eu, interferiu:
Ora... eu fico é desdignada... Criança é gente, ôs minina, e tem coração!


Mãĩa então dispôs que seu Zezĩo voltasse à feira com u minínu, tava na cara que aquilo era as lumbrigacriança passá vontade fica aguada, um pirigo! - e que comprasse, pois, nem que fosse uma bobaginha.
Veste a camisa, fílio, e vai com seu pai - organizou a mãe.
Fungando, seu José aceitou de má vontade. Moleque pirracento! Agora deu pra fazer dessas birras. Vote! Uma tia providenciou alguns cruzeiros, e agora até me lembro, foi a própria Tia Branca tão previdente. Ah, já tá melhorando, pensei. Tomei ar e empinei o narizinho. Tomamos café, bom, quem tomou foi meu pai que fez também a sua boquinha, pegando um torremo sargado, depois acendeu um cigarro. Mas fomos, ufa!


Um quilômetro mais pra arriba, demos com a gentarada, passeando e comprando naquele alvoroço. A feira era em frente ao Grupão. Vai daqui, vai dali, os preços horrivis, de tão altos. Deu mei-dia e já estavam desmontando as barracas; era fim de feira.
– Apura, meu fio, senão acaba o movimento, sô!
E caça e escolhe. Não, esse não, talvez aquele ali, ó, mas não. Que preço, viche! Volta e remexe nas bancas e caixotes. O pai, cumprimentava os mil conhecidos e, todo constrangido, explica aos feirantes a nova mania do menino... Dei finalmente com um vaso de plástico de cor verde-leitosa. Ergui-o e girei contra o sol para vê-lo bem. Tinha linhas decorativas gregas que o circundavam em cima e em baixo. O preço não era lá grandes coisas. No bojo dele havia uma representação de uva em baixo-relevo: sim, era um cacho de uvas, com duas folhas assim, dos lados, o galhinho lascado, ali, em cima e o típico raminho enrolado... As uvas estavam pintadas de branco, roxo e amarelo, e as folhas graúdas eram de um azul esmaecido. Coisa mais linda, achei! O material em si era tão leve que compreendi o porquê de terem posto um pouco de cimento no fundo... Para equilibrar. Ai, mas ficaria tão bonito numa mesa de sala! Mas, como sala no puxado não havia, seria na da cozinha mesmo, nas tardes, depois de lavadas as louças, com algumas flores dentro.


– Apura, minino!
– Paga, pai!
Voltamos. Eu, radiante, não via a hora de chegar, e já chegando, corri na frente e chamei todo mundo.
– Mãe! gritei.
– Já vô, fílio, deixa eu pentiá!


Ela veio lustrosa, disfarçando a curiosidade. Desamarrei o embrulho de jornal, jogando o barbante duro para um lado. Entreguei o é-pra-senhora-no-seu-dia-mãe e disparei, claro, a po-e-si-a que nem lembro mais qual foi. As tias aplaudiram e riram gostoso. Minha mãe..., ai, a minha mãe, no seu vestido incendiado de cores quentes, me abraçou com cheiro bom de sabonete palmolive, que contém lanolina, e me beijou. Meu pai sentado na cama, tirando o sapatão apertado, bateu uma pedrinha, suspirou que com essas modas, tão sem-jeito, que a escola incute nas crianças, hum, num sei, não! Eu num sei como é que eu vou terminá! Mas Dona Maria elogiou o menino gentil e lhe desejou boa sorte:
Deus que le dê virrtude, meu fílio!


A tia Lu fez que ia como as outras, mas não... abeirou foi mais, sorrateira. Precisava participar de tanto êxito, pois, afinal, na casa de sua patroa, a Dona Alcione, também professora e que ela adorava, se fazia o mesmo. Péra lá, disse de repente e, passando a mão numa tesoura usada, foi para a frente da casa, perto do alpendre cercado de balaústres trançadas e cortou três dálias pompom de cor groselha e uma mista de cores vermelho e branco. Esta ela tinha regado de propósito com água de carne, para conseguir a inusual combinação. Deixou os talos compridos, pois o vaso era fundo e pôs aguinha fresca... Pronto!


Depois do almoço, correndo desembestado, como sempre, eu entrava e saía, pra ver e rever aquela mesa coberta com uma humilde toalha e o vaso de minha mãe bem no centro. A mesa nunca esteve tão bonita. Nossa casa agora sabia que era mesmo um “Dia das Mães”! Foi assim que eu cumpri pela primeira vez com o meu dever de filio, azucrinando a família inteira, no primeiro dia das mães de que eu tenha notícia, quando corria o ano de 1965!


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(Antônio Villas, Veneza, maio de 2007)


[A 1ª ed. foi pub. na Rev. Guatá, Foz]

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