segunda-feira, 16 de julho de 2012



O BRAÇO A TORCER
(Foz, 19.maio.2012)


 Olha, aqui na Folha online, propaganda deste seu Roberto desmilinguido.
 Lá vem você, né? Não sou mais a namoradinha ingênua de outros tempos.
É. Na verdade, faz muito que não há razões pra ter ciúmes, mas ele insiste:
 Ora, o Sinatra, sim, era o homem! E também esteve em Jerusalém! Olha pra mulher, para ver a reação. Nada. Ela não para. Limpeza e cozinha não casam bem com falação. Ele perde a graça. Fecha então o notebook:
 Vou pra rua, diz. Seria chato mesmo ficar ali, durante a preparação do almoço, implicando com o romantismo dela e escutá-la dizer: Homem, cê tá ficando velho, dê o braço a torcer...
Abre o portãozinho que sempre chia. Aquele óleo Singer, que sua mãe usava, daria um jeito nisso, num só toque. Arruma a camisa na calça que já lhe aperta a barriga, limpa os óculos bifocais ainda com o lenço de algodão. Menos de vinte anos atrás, seu pai usava chapéu e não saia nem à esquina sem canivete e binga no bolso.
O ônibus verdão desce pela rua Xavantes e freia rinchando. Há um montão de jovens barulhentos ali no ponto. Os cães da casa vizinha fazem o maior escarcéu, reação, ainda que tardia, aos piás arteiros que tanto os atormentaram com os traques de Natal.
Poxa, e é domingo. Não há, pois, cobrador. Bem que outro dia um motorista estava maldizendo amargamente a empresa que os obriga a este duplo trabalho: dirigir e cobrar; perigo a mais pelo mesmo salário minguado. Tudo tão estressante.
 A saúde vai pro pau, meu amigo! Um companheiro adoeceu, ruim, ruim da cabeça, aí saiu e meteu processo neles e, claro, perdeu, mas já jogou pra segunda instância.
 Essa, sim, é uma causa pra se apoiar!, tinha dito enfático, querendo pagar com a onça, mas não havia troco. O motorista gostou tanto dessa adesão decidida que nem ia cobrar; pelo menos pareceu. Mas, quinze minutos mais tarde, já na porta do Terminal, quando o semáforo recém-instalado os deteve, o danado rebuscou graúdos noutra gaveta e acabou trocando-lhe a nota de cinquenta. Era justo, consolou-se, afinal estava viajando. Às vezes, porém, dói pagar o preço da passagem.
O ônibus arranca. Os cães se acalmam. Soubesse latir bem, eu lhes explicaria que por mais que ladrem a caravana não se detém, sorri. O fato é que, aliviado, pode começar o passeio. Sobe devagar pela rua.
As roseiras da vizinha, umas touceiras tão baldias, estão cobertas de cores e nuances. Que coisa! Resiste à tentação de lascar um galho delas, para pôr no vaso da sala. Olha pra cima, não sem esforço, seu pescoço anda meio duro. A sibipiruna altíssima da esquina teima em seu amarelo alegre, indiferente ao avançar do outono. O contraste com o azul do céu é uma daquelas coisas comuns de todo um sempre que nunca lhe cansam.
Ao dobrar a rua Carijós, para extasiado. A ameixeira encopada está forradinha de botões pardo-aveludados, abrindo-se. Seu perfume é doce, denso, aconchegante. Uma senhora florada! Abelhas zumbem inebriadas. Dá moleza, dá saudade.
Foz é mesmo uma cidade singular. Não há praticamente uma só esquina que não tenha um pé de fruta. Será o clima, será o carinho do povo? Olha de rabo de olho a plantação do seu Romano, vasto terreno de vários lotes que restaram da retalhação de uma chácara. Verdeja ali um mandiocal que se renova cada ano. Há quiabos. No que um dia vão ser calçadas, a batata-doce se esparrama pelo chão. Esquecido, mas viçoso, num intenso verde-escuro, o frondoso abacateiro faz companhia a duas moitas de acerola. No auge da produção dessas últimas, passantes ali se detêm e, em saquinhos, levam quilos de vitamina C. Todos o aprovam, se não estraga mesmo, né?
Do outro lado, e no jardim, há um pé de carambola com florzinhas roxas. Mais para baixo, na Caigangues, encontram-se mangueiras cobertas de inflorescências, cachos louros de talinhos vermelhos, um buquê imenso que a brisa toca e sacode. Das copas ela borrifa outro aroma no ar, este é mais fresco. Pena que até mesmo uma mínima geada, nas próximas semanas, possa acabar com este festival da abundância. Algo lhe dói, mas não sabe onde. Pois é! Nem toda flor chega a ser fruto, cisma. É flor demais, sorriu depois, aspirando profundo, como nunca fizera antes.
Ali, chegando na Marajoaras, um pé de uvaia esguio com suas frutas suculentas o atrai. Meio sem jeito – que dirão os vizinhos? – apanha uma das graúdas e a suga deliciado, hummm! Ela se derrete em seus lábios. Fruta madura perde todo o azedume.
Já, subindo pela Bororós, vê, por sobre as casas, três brilhosos jenipapeiros – os parentes gigantes do café. É o pátio da escola Benedicto João Cordeiro. Veem-se os jenipapos crescendo. Verdes eles contêm um sumo escuro que na pele, é difícil de tirar. Tudo a ver com os nomes índios que tecem a trama das vias no Jardim Tarobá. Ele imagina máscaras, rituais ou não, quanto podem ser resistentes... As inúmeras árvores de uva-japonesa estão todas carregadas. Quase ninguém as aproveita. Jabuticabeira também há só que, agora, a rainha das mirtáceas anda um pouco triste pelo frio.
Lembra que a cinco quadras dali, há um cajueiro, a mais típica das anacardiáceas, mas que terá acontecido com ele que se vê tão decrépito? Outro dia, deu-se mal ao comparar sua mulher com um anacárdio. – Sem coração? Eu?! Deu trabalho fazer as pazes.
Range de novo o portãozinho enferrujado. Cadê ela?
 – Ô Menina, vem cá. Ele espera na varanda e nada.Tira os sapatos. Entra. Não há ruído na casa grande demais só para os dois.
 Você reparou que esta cidade nunca fica sem flores? Mal acabam os ipês-amarelos, ainda no inverno, e nos enfeitam as tabebuias. Estas se acalmam e logo entram em cena as sibipirunas que nos dão aqueles tapetes dourados nas calçadas. Sobrevém então o incêndio dos flamboaiãs, um mês inteiro se não for mais... Aí, as paineiras, tão rosadas, tão distintas, não se fazem esperar. Troca a camiseta e ajeita os cabelos ralos.
 Minha irmã disse que adora as paineiras em todas as suas fases... Dália! Cadê você, mulher? Tá me escutando? E retoma:
 E já os ipês-rosa começam a dar o ar de sua graça. Dáliaaa!
 Ôh! Tô aqui na churrasqueira... Mas, o ipê-rosa não é a mesma tabebuia? ... E você, agora, não perde nenhuma dessas frescuras, né?! Quer uma carninha? Essa acabei de assar.
Ele vai lá para os fundos e pega  ávido o pratinho. A carne quente é um prazer.
 Ora! A beleza das flores, de todas as flores, me enleva..., diz rindo e, decide não ajuntar "mesmo que não passem de flores".
 Homem, arremata ela, cê já tá ficando velho, hein?! Dê o braço a torcer... Mexe as carnes abundantes ali na grelha. Vou botar agora mesmo aquele CD do Rei...: 'Detalhes'!
 Esse pedacinho, que bom! Ele vai apreciando cada um, cada textura, e outro e mais outro.
Milagre, pensa ela. Não é que ele está gostando mesmo!

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Antonio Villas é acadêmico de Letras.