terça-feira, 3 de abril de 2012

O POÇO

(2ª Ed. Antônio Villas, 5-5-2000)




O poço tinha sido escavado à sombra dum limoeiro que florescia o ano todo. As pombinhas ali sentavam de tarde, mansinhas, pousadas na cobertura bem feita que protegia o sarilho e a corda dos efeitos do sol e da chuva. A brisa calma balançava o limoeiro. De manhã cedinho a planta derrubava flores perfumadas em cima do caixão do poço. A mulher arredava as flores levemente raiadas de roxo com as mãos, respeitosa, satisfeita. O caixão do poço era de tábuas branquinhas, sempre bem lavadas.
Quem olhasse bem ia ver que a água era clara e brilhante, lá no fundo.
- Desce a tampa, aí, menino, que é pra não cair sujeira.


Tinha samambaia e musgo nas beiradas do poço. Das paredes dele escorria todo o tempo a umidade e as gotas caíam sonoras, balançando levemente aquele espelho fluído. Tão fundo que chegava a dar vertigem e, mesmo assim, a criançada vinha ali, pra explorar o seu mistério:
- Grita, diz uma criança, grita pro poço e escuta o que ele diz!
Cada uma gritou, curto, a sua palavra e o poço não falhou:
- Senhora, ora, ora, ora...
- Lembrança, ança, ança, ança...
- Responde, onde, onde, onde...
- Cuidado, ado, ado, ado...
Nossa! Cisma um menino, que será que o poço diz? Palavras mais esquisitas...


Nisso a mulher sai da casa pro terreiro, vê, mas não gosta da brincadeira e reclama no ato:
- Saiam daí, crianças. Fazer isso não presta. Este lugar é perigoso. Dentro do poço é escuro e tem pedras lá no fundo...
Mas elas não quiseram sair dali. Que ímã teria aquele bendito poço?! Com razão, fazia mais de 20 anos, o furador tinha encontrado a veia d’água tão rápido. A forquilha verde que ele usou por todo o quintal, de repente, tinha envergado prá baixo, com uma força tal, que não restou dúvidas... Era ali! E foi mesmo!
- Num senta na beira do poço, gente! Ô criançada mais sem consciência!


Nunca faltou água naquele poço. Os vizinhos admiravam, agradecidos:
- Que beleza, homem, e que sorte! Nós tiramos água do poço deles, durante todo o tempo da seca braba...
Mas uma menina pequena veio ali pra puxar água. Tinha que encher o tanque pra lavar roupa. Tirou o primeiro balde, muito pesado pra ela... Derramou água no chão de terra, fez lama onde pisava e ela estava descalça, cantando distraída. A mulher, sua mãe, vendo aquilo, aconselha aflita:
- Pega bem no sarilho, minha fia, mão firme, senão isso aí solta e dispara...


Atarefada a mulher volta pra dentro. O segundo balde lá ia subindo cheinho, derramando. A menina segurou o cabo do sarilho com a mão direita e foi puxar a alça do balde com a esquerda. A terra molhada, lisa que nem sabão. Os pés descalços resvalam. Ela perde o equilíbrio; o sarilho escapa e volta de uma só. Recebe a menina uma pancada de cheio na fronte, seu corpo gira no ar e o peso puxa tudo pra baixo. Um ruído infernal enche a tarde de terror:
- Teleque, teleque, teleque, teleque...
“Senhora d’Aparecida”, grita lá dentro a mulher e sai correndo. “Cuidado! - gritou a mãe - “cuidado!”, mas já foi tarde. O balde cai derramando e se espatifa lá no fundo... As paredes do poço se desbarrancaram... Falta ar nas profundezas... O poço era tão fundo e tudo ali foi tão rápido...




* * *

Havia por lá, uma moça que era um poço de ciúmes, quem
a poderia entender? Tirou o namorado da casa
da menina no tapa, mas esta já é outra
cisma, outra lembrança e outra
história...



E as pombinhas voaram dali. Latiram os cachorros e alguns uivaram. Acudiram as vizinhas. Seguraram os pulsos da pobre mulher, estertorando no desespero pela filha. As crianças, finalmente, se assustaram! Tentaram conselhos, mas dor de mãe é tão profunda... e a vertigem que balança. Ela não escutou foi nada...
E vieram os homens, os sarilhos e as cordas, os gritos, os palpites e os ecos... Custou trabalho, mas tiraram-na do poço.


O velho barbudo e suado limpou a piçarra da testa dela e arrumou seus cabelinhos molhados e, sem tirar os olhos do pequeno corpo, disse com a voz sumida:
- É, gente, seja feita a vontade de Deus!
A mulher rodeada pelas amigas, chama:
- Fia, ô minha fia... Mas ela não responde... Entendeu! Fita então o ar e desvairada exclama:
- Não!
E aquele “não” sai como lança, transpassando de novo a tarde, e o eco responde no poço. E o “não” foi tão profundo que ela mesma não se escutou e teve que repetir como o eco:
- Não! Não! Não! Meu Deus, não!


* * *


- Leva ela lá pa’ dento, ordenou uma velha entendida, traz o espêio, rápido. Coitadinha! Põe ali no rostim dela. Veja lá se embaça...
Mas o barbudo, agastado pelo choro baixinho e as ordens inúteis da banguela, reafirmou:
- Larga mão, Dona Gina! Eu já disse: Seja feita a vontade de Deus!


O povo se esparramou - cessou o falatório por agora - cada um pra sua casa. Só depois, os conhecidos foram chegando, devagar, cuidadosos, falando baixo... As mulheres na cozinha, os homens lá no alpendre.
Alguém trouxe um maço de velas. Duas meninas trouxeram flores grandes, amarelas: um girassol e uma dália.


E a lavaram com as mesmas águas daquele poço que também a tinham batizado, de urgência, onze anos atrás... E a vestiram na despensa, perto do grande pote marrom. Acenderam quatro velas, assim, nos cantos do lençol que forrou a mesa comprida... E a velaram na sala, dentro da noite. E noite adentro aquela história se contou uma e outra vez...


No caixão de tábuas branco que chegou bem tarde, puseram com dó, entre suspiros e ais, um travesseirinho de lamê dourado, costurado às pressas, alinhavado com pontos mal feitos de uma linha preta, cheio de folhas cheirosas e flores já murchas daquele limoeiro...


E, dia seguinte, ai! Enterraram-na no fundo duma cova de terra vermelha que... afinal também é poço: um poço profundo e radical; um poço seco e sem eco, poço inapelável e derradeiro e, agora, feito poça de dor e de lágrimas...




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